Caros amigos, já conversamos várias vezes sobre o problema de diferença de bitolas no Brasil e o porque desta característica em nossas ferrovias. O fato, como também já abordamos, tem origem no recebimento de nossos primeiros trens, os quais eram equipamento de segunda mão já que os países que iniciaram a implantação dos trilhos estavam padronizando suas bitolas e tinham que fazer dinheiro com o material que era retirado de serviço. Nossa querida Baroneza portanto, não chegou por aqui como nova!
O que iremos comentar neste post de hoje faz referência a um tipo de vagão que existe somente aqui no Brasil: O vagão Madrinha. Na realidade o termo madrinha já está um pouco desgastado por ser usado em outras situações que procurem fazer uma ligação entre equipamentos e componentes de tipos diferentes como truques, freio, engates,etc. Porém, nosso Madrinha é aquele que permite que locomotivas de bitola 1,60m puxem trens de bitola 1,00m e vice-versa, apesar desta última alternativa não estar em uso. Além disso, os Madrinhas somente circulam em vias onde existe a conhecida bitola mista ou bitola de três trilhos, implantada na região entre Campinas-SP e Santos-SP para liberar um maior fluxo de transporte para a descarga de grãos que vêm do interior do Mato Grosso do Sul para exportação. A bitola mista seria uma solução para nossas ferrovias e permitiria que os trens da estreita circulassem nas linhas da larga, integrando muito mais o país. Mas, este é um outro assunto a ser tratado com mais detalhes e em outra oportunidade, já que envolve não apenas a parte técnica mas também o bom senso e a ganância de dirigentes de empresas que preferem virar as costas à integração do sistema e às oportunidades de negócio que ela traria.
Voltando então ao vagão Madrinha propriamente dito, ele deve ter uma característica básica: sua tara ou como preferem alguns, seu peso próprio. Ela é fundamental para o bom funcionamento do vagão já que imaginemos um trem de cerca de 100 vagões graneleiros de bitola métrica, muito comum hoje na VLI. O Madrinha deve ser engatado logo após as locomotivas da larga e caso ele não possua um peso que seja equivalente a um vagão carregado, poderia instabilizar o trem. Veja a Figura 1 a seguir.
Como estudamos em artigos anteriores, em todas as rodas de qualquer tipo de vagão existe um binário de forças: lateral e vertical. É a relação L / V que mantém os vagões em circulação estável, sendo que nesta relação a força vertical sempre deve ser maior que a força lateral pois caso estes valores se invertam, a roda pode escalar o boleto dos trilhos e o vagão descarrilar.
O Centro de Gravidade (CG), local onde está o centro de massa do vagão, tem que ser baixo como dissemos para ajudar no mencionado equilíbrio de forças sobre as rodas pois caso ele seja muito leve, possuirá carga vertical baixa em relação aos vagões carregados do trem podendo em uma determinada curva ser deslocado para o lado externo pela ação combinada da força centrífuga e como reação à tração das locomotivas e ao peso dos vagões carregados. Possuindo o Madrinha um peso equivalente aos demais vagões carregados do trem, as forças sobre as rodas tenderão a se equalizar e a circulação manter-se sob controle.
Figura 1 – Trem de locomotivas de 1,60m com vagão Madrinha para vagões HFE de bitola 1,oom
Lógico que tratamos aqui de uma inscrição considerada normal e teórica, com todos os componentes em condições plenas de uso. Porém na vida real, os desgastes e as manutenções contínuas (ou a falta delas) vão modificando as características de muitos dos componentes, principalmente dos truques, onde a suspensão composta de molas helicoidais vai perdendo altura com o tempo e pode tornar-se sólida (molas fechadas) em uma curva onde as condições de superelevação estejam fora do indicado em projeto. Assim, um trem que possua vagão Madrinha terá que ser inspecionado antes de sua liberação para circulação de forma mais rígida que aquela realizada para um trem considerado comum.
Podemos observar na Figura 2, uma foto de um trem com vagão Madrinha da VLI em direção a Santos-SP, onde se pode ver de forma destacada sua superestrutura de baixa altura, composta de um grande contra-peso formado por uma caixa metálica onde foram colocadas rodas sucatadas e outros materiais ferroviários de grande peso, envolvidos por concreto injetado. Todo este peso constante foi calculado para ter uma equivalência com a lotação dos vagões do trem, evitando que haja um ponto fraco no sistema.
Mas não são somente estas as características funcionais e de projeto de um vagão Madrinha. Além do peso equivalente à condição carregado, estes vagões também precisam de outros componentes especiais como os engates. Quando dos primeiros projetos dos vagões Madrinha, os protótipos contemplavam dois engates em cada extremidade, sendo um com altura de 990mm para a bitola de 1,60m e outro mais baixo com 750mm e deslocado lateralmente para o acoplamento dos vagões da métrica. Esta solução se mostrou mais cara em termos de componentes e manutenção.
O projeto atual possui apenas um engate, tendo o sistema de choque e tração modificado para permitir uma angularidade lateral maior que o padrão normal dos engates tipo E que possui 7 graus. No novo sistema, o valor desta angularidade passa para 13 graus o que permite um melhor deslocamento sem afetar a inscrição. Com mesta solução foi necessário desenvolver um engate com haste de 1,50m de comprimento e um espelho (abertura da extremidade da longarina central) de aproximadamente 700mm de largura, como se pode ver na Figura 3.
Figura 3 – Posição do engate especial para a extremidade do vagão Madrinha com mandíbula de 483mm
Outro ponto interessante neste tipo de projeto são as mandíbulas dos engates. Elas que normalmente possuem 280mm (11″) de altura, precisam ter agora 483mm (19″) para poderem cobrir todas as possibilidades de acoplamento entre as locomotivas e o trem, como por exemplo rodas desgastadas, molas “cansadas” e vagões carregados. Esta diferença trouxe outro problema para as ferrovias que foi o índice de quebra destas mandíbulas especiais em serviço pois com os acréscimos de altura há um momento torsor sobre elas gerando uma carga adicional que pode quebrá-las durante a tração. Os fabricantes de engates têm se desdobrado para gerar um produto sem qualquer tipo de falha para que a aplicação dos vagões Madrinha siga sendo uma opção importante na integração das duas bitolas.
Além dos engates, também nos truques, as rodas não podem circular na sua última vida, ou seja, na sua condição limite de uso. Como todos sabemos, cada roda normalmente é usinada 3 vezes em sua bandagem para a recuperação de seu perfil de rolamento e friso. No caso do Madrinha a última vida de roda, que é aquela onde as rodas possuem menor bandagem, a diferença com a locomotiva da larga ou vagões da métrica aumentaria o momento torsor nas mandíbulas, gerando maiores quebras e paralisação dos trens ao longo do trecho. Assim, todos os Madrinha somente podem circular com rodas novas ou no máximo na segunda vida.
Os vagões Madrinha seguem operando normalmente nas linhas da VLI e também em alguns trechos da Rumo, que foi a ferrovia que desenvolveu a solução para aplicação em trens de longo percurso. Antes dela, estes vagões eram e ainda são usados somente no pátio do pool de vagões tanque de Paulínia, no posicionamento dos vagões tanto da larga quanto da métrica nas baias de carregamento, sendo que alguns destes vagões híbridos também foram vistos nas oficinas do Horto Florestal em BH, hoje pertencentes à MRS logística, quando o sistema ainda era administrado pela RFFSA, já que neste local chegavam os trens da SR3 (bitola 1,60m) e da SR2 (bitola 1,00m). Os Madrinhas são o exemplo clássico do ditado que diz que “a necessidade é que faz o sapo pular”.