Meus caros amigos, sempre buscamos passar para todos aqueles que são estudiosos, trabalham ou mesmo gostam das ferrovias, assuntos que possam esclarecer dúvidas funcionais ou de aplicação. Assim tem sido para o material rodante e seus componentes, sendo que hoje teremos a oportunidade de conversar mais detalhadamente sobre um tipo muito específico de engate automático usado nas ferrovias em carros de passageiros, que é o engate de Folga Controlada.
Já mencionamos que os engates automáticos foram evoluindo desde as primeiras unidades para permitir sempre o crescimento do modal ferroviário tendo em vista o aumento do comprimento e o peso dos trens modernos. Hoje porém, não estaremos presos a este aspecto ligado à resistência dos engates e suas partes mas sim ao aspecto conforto e segurança dos usuários. Digo conforto porque os engates de Folga Controlada ou Controlled Slack, nome desenvolvido nos EUA quando de seu projeto, tem por principal função reduzir a folga entre os engates, a qual provoca a conhecida onda de impactos sonoros que caracterízam um trem quando de sua partida. Esta onda de impactos é proposital e se justifica em função da necessidade que as locomotivas têm de tirar o trem da inércia de forma gradual. Sem as folgas que existem em cada conjunto de duas cabeças acopladas, principalmente as locomotivas a vapor não teriam força de tração ou peso aderente suficiente para “arrancar”com um trem. Desta forma, o que precisamos é movimentar o trem aos poucos.
Na foto vemos claramente a folga livre entre dois engates acoplados, sendo que na situação visualizada a folga aparece na condição de trem tracionado ou esticado. Quando o trem está descendo uma rampa ou sendo empurrado comprimido em um pátio nas manobras, a folga aparece na parte central de contato entre as mandíbulas, possuindo um valor de aproximadamente 19mm (3/4″) quando as mandíbulas são novas, aumentando quando estas se encontram desgastadas.
Se montarmos engates do tipo usado nos vagões em carros de passageiros, os usuários sentirão os impactos cada vez que o trem esticar ou encolher, gerando enorme desconforto, com objetos caindo, bebidas derramando, etc. Para gerar um conforto maior aos trens de passageiros, inclusive para garantir uma maior velocidade e segurança operacional, foram projetados os engates de Folga Controlada, com o conjunto visto na figura seguinte:
O que estes engates possuem de diferente em relação aos engates convencionais usados nos vagões de carga? Podemos responder em duas partes:
1- Redução dos impactos longitudinais e desconforto: Para a redução e controle dos impactos longitudinais, além da eliminação do desconforto causado por eles, a solução encontrada pelos projetistas foi introduzir nas mandíbulas um ressalto interno onde duas pequenas molas são instaladas com montagem de uma castanha que fica projetada para além da face da mandíbula, reduzindo a folga.
A redução foi tão importante que se engatarmos um carro de passageiros que tenha engates de folga controlada com outro que possua engates normais, a redução do impacto se fará na ordem de 64%, chegando a 100% quando dois destes engates especiais estiverem trabalhando juntos, ou seja, os passageiros não perceberão qualquer impacto quando a locomotiva se mover. De fato, o uso destes engates fará com o trem se mova como um bloco único, facilitando também as aplicações e alivio do sistema de freios pneumáticos do trem.
2- Aumento da segurança operacional: Para o aumento da segurança operacional, a solução de Engenharia Ferroviária foi a introdução de um êmbolo lateral, instalado do lado oposto à mandíbula, também provido de uma mola interna, e que se encaixará em uma saliência de formato côncavo existente na cabeça do outro engate, muito parecida com as aquelas que existem nas cabeças dos engates tipo F destinados aos longos trens unitários de minério e carvão. O encaixe do êmbolo e a forma estrutural das cabeças dos engates também aumentará a segurança contra o engavetamento entre carros no caso de acidentes, já que dificultará que os engates se soltem.
No esquema abaixo vemos claramente os dois pontos mencionados.
Todas as vezes que tratamos dos engates de folga controlada, os quais como verificado eliminam a folga entre dois engates acoplados com significativa melhora operacional e de segurança nos trens de passageiros, alguém nos pergunta porque os trens de carga não os utilizam e sim engates do tipo E ou F, os quais não possuem estas peças adicionais? A resposta está ligada a outros aspectos além do fator de conforto, inexistente nos trens cargueiros. Os trens de carga precisam das folgas entre engates por seu grande peso na movimentação!!
Já vimos opiniões na ferrovia de que hoje as modernas locomotivas Dash ou AC com motores de tração de corrente alternada, são suficientemente fortes para arrancar com um trem carregado esticado. Pode até ser que em determinados locais do perfil longitudinal de traçado da ferrovia isto seja factível, porém devemos lembrar que nem em todos os pontos movimentar trens de 8.000t, 10.000t, 15.000t ou mais seja uma decisão operacional muito boa. Além disso, a vida útil dos motores de tração e em geral de todas as partes da locomotiva estará sendo muito reduzida com expressivo aumento do custo de manutenção, consumo de combustível e por aí vai……..
Os engenheiros ferroviários têm a missão de enfrentar os desafios de maior solicitação de movimentação dos trens com responsabilidade, devendo estudar cuidadosamente cada solução existente para poder justificar suas posições perante as ideias muitas vezes ilusórias de outras áreas da empresa. Entender bem como um trem se movienta é fator imprescindível para todos aqueles que trabalham nas áreas técnicas de uma ferrovia. Por isso, recomendo sempre a boa literatura técnica que já existe no Brasil como o livro Segurança Operacional de Trens de Carga, escrito pelo meu amigo Luiz Henrique Hungria, mencionado recentemente em um dos posts. Nesta obra todos os aspectos físicos dos trens em movimento estão cobertos, sendo portanto uma leitura obrigatória aos colegas engenheiros ferroviários.
Estarei à disposição de todos aqueles que queiram maiores detalhes sobre os engates de folga controlada e de outros tipos que existem, limitado obviamente aos aspectos de propriedade intelectual de cada projeto.