1- ASPECTOS GERAIS
Poderíamos dizer que desde o início efetivo das operações ferroviárias, um dos aspectos que mudaram radicalmente a Engenharia Ferroviária foi a introdução do freio a ar comprimido, devida à genialidade de George Westinghouse no início do século XX. Antes dele, a própria ferrovia foi posta em cheque em função dos constantes acidentes que ocorriam com elevado número de vítimas. Os jornais norte-americanos da época chegaram mesmo a pedir a paralização total das operações pela precariedade do sistema de freio aplicado ao material rodante.
Já comentamos aqui o funcionamento do sistema pneumático criado por Westinghouse no post relativo à evolução das válvulas de freio e por isso mesmo, iremos desta vez focar nossos esforços no sentido de esclarecer muitas dúvidas existentes quanto à parte mecânica do conjunto, ou seja, a definição técnica para peças como alavancas, tirantes, etc, as quais compôem a chamada TIMONERIA DE FREIO. Ela sempre existiu nos vagões pois permite a efetividade da aplicação da força de frenagem sobre as rodas, podendo ampliar ou diminuir a força que é feita pelo cilindro de freio quando o êmbolo interno é empurrado para fora, começando a frenagem Ver Figura 1, abaixo.
Figura 1 – Timoneria de freio esquemática para vagões
Neste trabalho, procuraremos mostrar como devemos iniciar o projeto de uma destas instalações mecânicas em função do vagão onde ela será montada, de forma a fazer com que a mesma funcione dentro de determinados parâmetros de eficiência e segurança estabelecidos nas normas e práticas de operação ferroviária.
2- PONTOS BÁSICOS
Alguns pontos básicos precisam ser seguidos para que uma timoneria de freio seja realmente eficiente e segura:
2.1 – Área disponível
O tipo de vagão para o qual estivermos projetando a nossa timoneria de freio, irá determinar a área efetiva de trabalho que poderemos vir a utilizar. Todos sabemos que a timoneria é uma continuação da parte pneumática do sistema pela ligação direta entre o cilindro de freio e a alavanca principal a ele conectada. Como a força realizada no cilindro para uma aplicação de serviço é definida em função da pressão de equalização e que tal pressão tem valor especificado em norma como sendo 64 psi (4,5 kgf/cm2), teremos uma força disponível aplicada no tôpo da alavanca principal de 2.280 kgf para um cilindro de 10″ de diâmetro por 12″ de comprimento. Daí para frente, o trabalho será feito pela timoneria que amplificará esta força até que as 8 sapatas toquem as rodas promovendo a frenagem sem travamento, arrastamento ou excesso de temperatura. Este é o princípio da eficiência de frenagem!! Quando viermos a abordar o exemplo de um cálculo completo, poderemos esclarecer mais estes valores.,
Tendo tal princípio claro, precisamos estudar com bastante cuidado a área disponível para a instalação da timoneria, a qual pode estar montada na parte inferior ou na parte inferior e também na parte superior do estrado como no caso de vagões hopper. Tudo irá depender da geometria da estrutura resistente do vagão, lembrando que a timoneria muda de posição com o tempo em função do desgaste das sapatas de freio. Como informação inicial, destacamos que os vagões do tipo gôndola e fechado são os mais favoráveis para a definição da timoneria, sendo que no caso dos hoppers teremos mais dificuldade em função das tremonhas de descarga, nos plataformas as vigas com inércia variável e nos tanques as restrições para soldagem de suportes no corpo cílindrico, além do espaço consumido pela tubulação de descarga.
2.2 – Padrão de truques
Outra etapa importante do nosso caminho é conhecer o padrão de truques usado na ferrovia onde o vagão irá circular. Alguns poderão perguntar: Por que os truques afetarão o projeto da timoneria de freio? A resposta está ligada ao sistema de alavancas que é usado pela ferrovia, ou seja, saber se são usadas alavancas verticais ou inclinadas. Enquanto que as primeiras recebem o tirante principal de ligação do truque com a timoneria da caixa, na linha de centro do vagão, o sistema com alavancas inclinadas recebe o tirante lateralmente à linha de centro do vagão. Na Figura 2 a seguir, podemos ver a diferença mencionada e concluir que nossa escolha estará diretamente ligada a manter a padronização e principalmente a intercambiablidade dos truques.
Figura 2 – Diferenças de truques com alavancas verticais ou inclinadas
Estas configurações fazem parte do sistema total de freio do vagão, ou seja, a multiplicação realizada nas alavancas que estão no estrado (F), são complementadas pela multiplicação que é feita em cada truque. Portanto, a relação de multiplicação total proporcionada pela timoneria é a soma das timonerias do estrado e dos truques. Mais a diante, quando formos exemplificar o cálculo da timoneria total, estaremos detalhando como cada parte trabalha para atingirmos a eficiência necessária que será refletida nas taxas de frenagem. Na Figura 3, encontramos o esquema de cada opção de montagem citada para os truques e a furação padrão para cada montage
Figura 3 – Esquema de furação das alavancas dos truques
Na primeira versão ambas as alavancas possuem uma furação de 127mm x 254mm, que é a mais comum na bitola métrica e a segunda versão mostra a aplicação de dois tipos de alavanca, sendo a maior, também chamada de alavanca viva (alavanca que é conectada ao tirante que vem do estrado) com furação de 195mm x 390mm com a menor conhecida como alavanca morta (alavanca presa ao setor de graduação) com furação de 140mm x 280mm, muito utilizada na bitola de 1,60m. Todas estas dimensões serão devidamente mencionadas quando de nossa análise completa e cálculo demonstrativo.
2.3 – Complexidade
Conhecida a área disponível no vagão, destinada à timoneria de freio, bem como o sistema de alavancas que está padronizado para os truques, precisamos ter em mente que o projeto da timoneria precisa ser o mais simples possivel em termos de quantidade de componentes. Muitas alavancas implicam em mais suportes, pontos fixos, corrediças, etc., o que além de encarecer a solução a adotar, também afetará o rendimento do freio. Quando realizamos o cálculo das peças da timoneria, verificamos o quanto a força feita no cilindro de freio é amplificada. Porém, a complexidade da solução pode nos tirar a eficiência necessária pois todos os pontos onde haja atrito e conexão entre pinos e furos, irão reduzir a força efetiva.
Muitas vezer temos dificuldade de projetar uma timoneria de freio simples, composta de apenas duas alavancas, como já citamos acima. Por isso, o projetista precisa ter o máximo de cuidado para prever um sistema com um mínimo de perdas. A Associação Americana de Freio a Ar (Air Brake Association) nos recomenda que não apliquemas soluções que possam retirar mais do que 30% de efetividade do sistema de alavancas e tirantes, o que é o mesmo que dizer que deve ser considerado como mínimo um rendimento de 70%. Assim, quando realizarmos os cálculos demonstrativos na Parte 2 deste trabalho, aplicaremos um fator de perdas que nos garanta a segurança e a eficiência necessárias para que o trem possa parar dentro dos limites estabelecidos.
Em resumo a mensagem que fica é: busque utilizar a menor quantidade de alavancas possível!! Isto te trará muitos benefícios com menos perdas!!
2.4 – Pesos
Para definir uma boa instalação de freio, precisamos saber o total de massa a ser freiado. O trem pode ser composto de vagões com vários tipos, tamanhos e pesos e tudo isso precisa ser devidamente equilibrado para que não ocorram choques. Lembremos que os sistemas de freio dos vagões, apesar de serem desenvolvidos de forma individual, deverão trabalhar de forma conjunta e equilibrada quando o trem estiver montado. Conhecer claramente os valores de tara e de peso bruto máximo de cada veículo é indispensável para aplicarmos os valores no cálculo das taxas de frenagem em vazio e em carregado (parte 2), as quais são estabelecidas em norma como controle para uma segura distância de parada. Além disso, é conhecendo os pesos que o projetista poderá definir se a instalação da timoneria de freio terá, ou não, um dispositivo chamado de vazio-carregado, o qual graduará a pressão de ar que chegará ao cilindro, graduando em consequência a respectiva força a ser amplificada na timoneria e aplicada às rodas.
Para auxiliar no conhecimento dos valores de peso bruto máximo que devem ser considerados, recomendo a consulta e a leitura do nosso post sobre Classificação de vagões no Brasil. Lá estão os limites de quanto os vagões pesam carregados em função de sua capacidade e de seus componentes básicos como estrurtura, truques, rodas, eixos, rolamentos, etc. Para a tara, existe uma análise que deve estar diretamente ligada ao bom senso, ou seja, sabemos que um vagão plataforma pesará vazio muito menos que um graneleiro, logicamente devido à sua definição estrutural. Além disso, como existe uma pressão das ferrovias para que os vagões sempre pesem o mínimo possivel, especial cuidado deve ser dado pelo projetista para que ele não instabilize o trem durante uma aplicação de freio, seja ela normal, para controlar a velocidade ou para parar o trem, seja ela em aplicação de emergência, a qual incrementa mais força sobre as rodas, exatamente para que a distância de parada seja menor.
2.5- Taxas de Frenagem
Chegamos agora a uma importante definição que devemos dar ao nosso projeto de timoneria: saber como nosso vagão está em relação aos valores de taxa de frenagem estabelecidos nas normas. Como já citamos por várias vezes, cada vagão tem suas taxas de frenagem em vazio e em carregado e tais taxas são definidas como sendo o total de força aplicado sobre as rodas estando o vagão vazio (Fv) ou vagão carregado (Fc). No cálculo da timoneria, como veremos, dividindo este total de força por sua tara, teremos a taxa em vazio e dividindo pelo peso bruto máximo, a taxa em carregado.
Taxa de frenagem em VAZIO: Tv (%) = Fv / TARA
Taxa de frenagem em CARREGADO: Tc (%) = Fc / Peso Bruto Máximo
As taxas de frenagem são expressas em termos de porcentagem e os limites hoje considerados para os vagões pelas normas são:
Faixa de taxa de frenagem em vazio: de 15% a 32% do valor da tara do vagão. Assim, poderemos usar de 15 a 32% do valor da tara para freiar o vagão vazio.
Faixa de taxa de frenagem em carregado: de 11% a 14% do valor do peso bruto máximo. Assim, poderemos usar de 11 a 14% do valor do PBM para freiar o vagão carregado.
Se o valor de força sobre as 8 rodas estiver contido nestas faixas de taxa de frenagem, haverá segurança suficiente para que não ocorram choques perigosos à segurança operacional dos trens. Caso estejam fora destes valores componentes importantes como engates, mandíbulas, aparelhos de choque, etc ficarão vulneráveis a quebras e separação indevida no trem.
Quando do cálculo de demonstração que faremos na Parte 2 deste trabalho, poderemos verificar com valores reais de taxa de frenagem como devemos seguir definindo nosso projeto sem receios. Hoje, existe um padrão operacional das ferrovias onde TODOS os vagões indistintamente devem seguir às faixas de taxa de frenagem.
2.6- Sapatas de freio
As sapatas de freio são os elementos que tocam as superfícies das rodas quando da aplicação de freio. É portanto por meio do atrito que o trem reduz sua velocidade ou é parado dentro de algum limite de pátio ou via de cruzamento.Antigamente as sapatas de freio eram produzidas de ferro fundido, já que este material fornecia suficiente coeficiente de atrito com as rodas para equilibrar a ação de frenagem dos trens. Como o aumento de peso, comprimento e velocidade dos trens que possuímos, foi desenvolvida uma resina fenólica oara a fabricação das sapatas. Enquanto que as sapatas de ferro fundido possuem um coeficiente de atrito com as rodas em torno de 0,15 as sapatas fenólicas possuem o dobro, ou seja 0,33.
Estes valores são muito importantes no processo pois apesar das sapatas fenólicas serem muito mais eficientes em termos de frenagem, distância de parada, etc,, elas acabam por concentrar muito calor nas pistas de rolamento das rodas, o que pode ser perigoso para o aparecimento de trincas que poderão quebrar as rodas ou movê-las nos eixos, gerando perda de bitola de eixamento com consequente descarrilamento. Desta forma, sempre que calculamos a timoneria de freio, ao final dos cálculos, checamos se a carga térmica está demasiada.
Igualmente importante trata-se da verificação de demanda de frenagem, a qual também varia com o coeficiente de atrito sapata x roda. O princípio do bom sistema de freio nos pede para definir uma instalação onde todos os veículos do trem parem sempre com as rodas girando, mesmo em situações de emergência. Caso haja excesso de frenagem e travamento das rodas, poderemos ter a ocorrência do CALO, exatamente gerado pela perda da condição de girar das rodas durante as aplicações de freio. Neste caso de demanda, comparamos 1/8 da carga vertical que chega às rodas em função do peso do vagão vazio ou carregado, com 1/8 da força de atrito normal à superfície da pista de rolamento da roda. Obrigatoriamente,a componente de atrito não poderá ser maior que a componente calculada na carga vertical pois caso assim ocorra, haverá o travamento, deslizamento e calo nas pistas das rodas. Quando do cálculo demosntrativo, todos estes pontos serão devidamente observados.
2.7 – Operação e via permanente
Para que um cálculo de definição de timoneria seja bem executado, deve haver estreita relação entre as equipes de operação, via permanente e engenharia de material rodante. Ter o completo entendimento das condições de operação e manutenção, afetarão diretamente as boas condições de frenagem do trem, reduzindo os custos de desgaste e troca dos componentes. Perfil das vias principalmente nas serras, velocidades permitidas nos trechos e cálculo básico de freio estarão sempre unidos para a definição de um bom sistema de timoneria.
2.8 – O Ajustador Automático de Folgas
Assim como a válvula operacional é o coração do sistema pneumático de freio, o ajustador automático de folgas é também o coração da parte mecãnica da instalação. Este componente mantém a distância entre sapatas e rodas, bem como o curso do cilindro de freio para que a força de frenagem não vá diminuindo com o tempo. No passado, até o final dos anos 50, com o passar do tempo e o desgaste das sapatas, a timoneria se movimentava e as folgas somadas no sistema faziam com que o êmbolo do cilindro tivesse um curso cada vez maior para uma mesma pressão de equilíbrio, o que reduzia a força final de frenagem sobre as rodas.
O ajustador automático de folgas, não foi uma invenção da ferrovia norte-americana mas sim dos engenheiros suecos que criaram o dispositivo para reduzir o tempo de atuação das equipes de manutenção que ao trocarem as sapatas desgastadas precisavam ajustar a posição das alavancas manualmente. Hoje, ele é indispensável o mandatório em qualquer tipo de vagão pela segurança operacional que gera.
Durante o exemplo que apresentaremos na Parte 2 deste trabalho, poderemos observar a importância do ajustador de folgas muito ligado à manutenção do curso em qualquer situação e como calcular sua aplicação junto com a definição estrutural de alavancas e tirantes.
Até já!!!